Inteligência artificial e o choque na advocacia

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Nenhum gestor de escritório de advocacia ou de departamento jurídico pode ficar alheio a esse processoe precisa adaptar sua banca ou seu setor ao momento atual, sob pena de perecer.

Devemos ter medo ou entusiasmo? Coloquemos nosso foco no terror ou nas oportunidades que o uso da tecnologia pode nos trazer? Alguém é capaz de ler um jornal ou acessar as mídias sociais sem se deparar com debates sobre a inteligência artificial (IA)? Há de tudo um pouco: IA na medicina, IA nasartes, IA na advocacia, IA no campo, nas escolas, no sistema financeiro, nos nossos celulares, no nosso trabalho, nos nossos lares, na nossa vida.

Qualquer pessoa que, ao longo dos anos, tenha um celular nas mãos, acompanha muito de perto aevolução de cada atualização dos softwares incluídos nos smartphones. E percebe o quanto todos temos nosso cotidiano dirigido pelos robôs, que fazem a gestão dos nossos saldos no banco e até nosdizem os melhores caminhos para ir de casa ao trabalho.

Então qual o motivo de estarmos (quase que) de uma hora para outra tão alucinadamente debatendoesse assunto de inteligência artificial nas esferas mais variadas? Qual o gatilho de tamanha comoção? Comecemos analisando o que se tem dito sobre o impacto da inteligência artificial no futuro do Direito.

A Goldman Sacks anunciou que 44% das atividades desempenhadas na área jurídica podem ser executadas pela inteligência artificial. Claro que uma informação dessas abala os alicerces de qualquer operador do Direito, que, aliás, simultaneamente, vê surgir no mercado programas específicos para suas atividades (no âmbito global, nomeadamente, Harvey e CoCounsel, por exemplo). Não bastasse o elevado número de advogados de carne e osso que concorrem entre si (no Brasil, somos mais de 1 milhão), agora também robôs somam-se a esse contingente.

Programas como o ChatGPT abriram-nos os olhos para uma nova fase da computação. Até pouco tempo, estávamos na fase extrativa, na qual o foco se resume a extrair dados que posteriormente serão usados para decisões e conclusões. Mas agora assistimos, embasbacados, à etapa generativa, muito mais poderosa, na qual conclusões são alcançadas pela máquina, a partir de dados anteriormente extraídos.

Quais mudanças podemos esperar no curto prazo? Comenta-se (Massimo Sterpi sendo um dos mais eloquentes sobre o assunto na Europa) que nos grandes escritórios haverá redução da vantagem advinda de equipes numerosas, que o faturamento com base no número de horas trabalhadas serás ubstituído pela remuneração baseada nas tarefas entregues e que a proporção entre sócios e seus assistentes será reduzida a praticamente um a um.

Outras consequências comentadas são a diminuição de advogados na operação (especialmente assistentes, associados e advogados juniores), diminuição dos honorários para atividades mais padronizadas e concentração de trabalhos e remuneração nos sócios mais experientes e líderes em tecnologia.

O tempo dirá o quanto dessas previsões são acertadas. Mas o fato é que nenhum gestor de escritório deadvocacia ou de departamento jurídico pode ficar alheio a esse processo e precisa adaptar sua banca ou seu setor ao momento atual, sob pena de perecer. Quem sobrevive não é o mais forte nem o maisinteligente, mas aquele com mais capacidade de adaptação (Leon C. Megginson).

Ao mesmo tempo, que oportunidade magnífica podem nos trazer as novas tecnologias para garantir o acesso à Justiça, que está determinado na Constituição, mas tantas vezes falha na efetividade da realidade.

Dados do IBGE indicam que cerca de 62,5 milhões de pessoas (ou 29,4% da população do país) estavam na pobreza em 2021. Estamos falando de pessoas que, nos mais variados casos, esperam queo Poder Judiciário possa aplacar situações de extrema necessidade, como o recebimento de uma pensão ou de uma dívida com seu empregador.

Ora, o tempo é muito mais cruel para essa população necessitada do que com os mais abastados. O fato de uma decisão judicial demorar para ser efetivada é muito mais penoso para quem espera odinheiro para pagar o supermercado do mês do que para quem, ao ser indenizado, vai poder trocar de carro ou fazer a viagem dos sonhos. Justiça lenta é sinônimo de injustiça.

Para ilustrar esse cenário, pensemos na seguinte situação: alguém que foi lesado ganha a causa emtodas as instâncias e finalmente consegue que o devedor deposite em juízo o valor do seu crédito. É mais do que sabido por quem milita no contencioso que desse fato (depósito de crédito em juízo) até o efetivo recebimento da devida quantia, dias se passarão (em alguns casos, muitos e muitos dias) durante os quais o cliente ligará diversas vezes perguntando pelos valores depositados. O (a) advogado(a) então pedirá aos servidores do Judiciário que as providências de levantamento sejam efetivadas eouvirá da serventia que falta gente para dar conta do volume, que seu caso está na pilha e precisaesperar a vez.

E se, diferentemente, um robô pudesse, a partir da identificação da decisão judicial “pague-se”, nosistema do Tribunal de Justiça, transferir, no mesmo momento, o valor devido da conta judicial para oPIX ou a conta do credor?

Antes da pandemia, em 2019, António Guterres, Secretário-Geral da ONU, disse que devemos agarraras oportunidades que essa tecnologia nos proporciona e, ao mesmo tempo, gerenciar seus riscos. Acertou.

*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.

Alessandra Mourão

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